sábado, 5 de março de 2011

O assassinato do abacateiro

Era uma árvore linda, frondosa, robusta e saudável. Tinha uma irmã menor, plantada na mesma cova e que crescera quase colada a ela, um pé de cajá. Todos os dias, além da passarinhada alvoroçada, era visitada por micos que iam ali para brincar e buscar alimento, bagunceiros e donos de um gritinho agudo que já virara marca sonora na vizinhança.

Quando nos mudamos para a rua, a árvore foi uma das primeiras a nos dar as boas vindas. Carregadinha de abacates, chamou a atenção dos homens da mudança, que, após levarem os móveis para dentro, manobraram o caminhão para debaixo de seus galhos, subiram na caçamba, usaram um cabo de vassoura para cutucá-los e foram embora cheios de frutos saborosos.

A rua a amava. Como estava na calçada, pertencia a todos, e a todos servia sua sombra, sua música tocada ao vento, seus abacates.

* * *

Há poucos dias a casa bem em frente à arvore foi vendida. Os novos donos, inexplicavelmente, acharam que eram donos também do enorme vegetal, e que tinham o direito de dispor livremente de sua vida. Não se importaram que ele estivesse completamente indefeso, passivo, submisso, embora isento de qualquer sentimento de vingança.

Quando a serra elétrica começou seu trabalho, achei que era apenas um rápido serviço de poda. Talvez estivessem preocupados com os carros que estacionavam rente ao meio-fio, que eventualmente poderiam receber uma chuva de abacates. Talvez os galhos estivessem danificando a fiação elétrica. Aguardei, inconformado mesmo assim: em que outro planeta além do nosso um fio elétrico é mais importante que uma vida que levou décadas para se fortalecer e consolidar? Não seria mais simples, rápido, barato, ecológico, humano, só passar os fios por outro lugar, dando uma pequena volta, se preciso?

Mas o problema não eram os fios. Chegaram os músicos do meu grupo e iniciamos o ensaio ao som da serra elétrica. Quando percebi, já não havia mais nenhum galho com folhas. Nem frutos. A vizinha do lado - única com coragem e iniciativa para enfrentar pessoalmente o atacante - tentava em vão impedir o crime. Mas não havia mais o que defender. O tronco já estava com as entranhas à mostra, sem esperança de recuperação. Nem a cajazeira havia sido poupada. A ignorância tinha vencido.

* * *

A natureza não se vinga. Apenas reage de modo reflexo, assim como a água do rio se desvia das pedras. E a vida sempre encontra caminho em outro lugar.

Aqueles vizinhos agora não terão mais sombra em seu quintal, e ficarão expostos ao sol da tarde, inclemente sobre o seu telhado de zinco. Nem sombra na calçada, que substituiria a falta de garagem. Não terão mais frutos, nutritivos, gostosos e gratuitos. Não terão mais privacidade, pois suas janelas agora estão abertas aos olhares de meia dúzia de casas próximas. Não terão a companhia de animais inofensivos e amigos, atraídos por sua bela copa. Não terão um brinquedo e um exercício físico divertido para os filhos, que poderiam grimpá-la e balançar-se pendurados. Não terão o som relaxante do vento criando corredeira entre suas folhas. Não terão a energia vigorosa da vida vegetal a se irradiar e influenciar a nossa vida animal.

Procuro o lado positivo das coisas, e vejo que agora tenho mais luz, e minha vista alcança um pouco mais longe. Mas o canto dos passarinhos está distante, e ainda não voltei a ouvir o chamado agudo dos miquinhos.